quarta-feira

SMS

Eu estou sempre contigo, quaisquer que sejam as circunstâncias. E quero que saibas que, se não nos voltarmos a encontrar - coisa em que eu não quero acreditar - , eu permanecerei sempre a teu lado. Porque tu, só tu é que importas. Eu devia ter-te dito isto antes de embarcar. Não o fiz. Arrependo-me. Já não me resta muito mais tempo. Vou pensar em ti. Quero que tu saibas que todo o meu ser está contigo. Agora e para todo o sempre. E isso, apesar do pavor que sinto, ajuda-me. I miss you.

Não sei se foram estes os últimos pensamentos partilhados por aqueles que iam a bordo do fatídico vôo 447, da Air France. Talvez.
Se eu tivesse tido o azar de ter embarcado nesse vôo agora não estaria aqui a actualizar este blogue e nuncaninguém saberia as minhas últimas palavras. Agora, já as sabem. Espero nunca ter que as pensar numa situação tão trágica e tão desesperante.

Os meus sentidos pêsames a todos os que foram afectados por esta tragédia.

domingo

Quando um mentiroso confesso e assumido afirma que está a falar verdade, que poderemos concluir?
Que está a mentir? Ou que está a falar verdade?
Estava irritado. E ansioso. Porque já não recebia notícias há algum tempo. Sempre fora um sujeito com uma imaginação exuberante e muito dado a fatalismos. E quando ficava perturbado, perdia a capacidade de manter o sangue-frio e cometia erros. Mas tudo se poderia justificar já que já diziam os antigos que o amor cega qualquer um. O problema é que o seu grau de delírio era tal que ele se julgava completamente apaixonado. Todos, inclusivamente os que com ele conviviam todos os dias, lhe tinham um ódio enorme e só esperavam que os erros fossem tantos que pudesse ser liminarmente condenado ao degredo, no mínimo por uns 70 anos.
Tal não foi preciso porque, no dia seguinte, saindo de casa, foi atropelado. 
Teve morte imediata.
Ao funeral não compareceram mais de 5 pessoas, quase todos para se assegurarem que ele estava, de facto, morto.
Ninguém manifestou a mais mínima comoção. 
Questionado acerca do sucesso do evento, respondeu, aos excelentíssimos senhores jornalistas, o seguinte:
"Não atigimos os objectivos propostos, mas temos a clara consciência de que superámos fortemente as expectativas criadas. E a prova é que vendemos 4 toneladas de bolos de bacalhau."
"E pastéis de belém, não venderam?"
"Não, os pastéis de belém integravam-se nos objectivos propostos, os quais, como referi ao seu colega, não foram atingidos, mas as expectativas foram sobejamente ultrapassadas. Muito obrigado pela vossa atenção. Dado o adiantado da hora, não responderemos a mais nenhuma questão!"

sábado

Vivia numa ânsia de protagonismo, queria sempre aparecer, o importante para ele era a imagem. Chegou ao ponto de confessar a uma das suas numerosas girls que ficaria feliz se o seu nome aparecesse mesmo na secção dos crimes. 
Não chegou a ter o desejo completamente realizado. O seu nome apareceu sim, mas foi na secção da necrologia.

terça-feira

Adoro quando te vejo chegar com a barba por fazer, aquela barba de três dias. E te aproximas e te sorries. Adoro quando, deitado no teu peito, passas a mão pelo meu cabelo e me dizes quão importante eu sou para ti. E que me amas. E que eu sou o ser mais perfeito do mundo. E que precisas de mim. Já sei que não gostas que eu responda. Aliás, disseste-me, uma vez, que aprecias o silêncio. Mas eu, tu sabe-lo bem, adoro ouvir a tua voz. E a repetir, vezes sem conta, aquilo que eu já sei há tanto tempo. Mas preciso muito de te ouvir, novamente, a dizer que me amas.
É o peso dos anos, sabes. Quando tu tiveres mais 30 anos dos que tens actualmente, compreenderás a minha necessidade.

segunda-feira

A carteira no bolso de trás das calças, à vista, gorda e apetitosa, num corpo jovem e esbelto, escultural mesmo, a mão na mão da mulher que o acompanhava, uma mão agarrada na outra mão.
É natural que, quando chegassem ao fim da rua, a carteira gorda e apetitosa já não estivesse no seu bolso de trás das calças, daquele corpo jovem e esbelto, escultural mesmo, mas a mulher, essa, estava bem segura e não era possível perdê-la.
O amor é lindo!

quarta-feira

Conversas telefónicas no comboio

- Sim, eu também te amo. Sabes que eu te desejo. E que tenho tesão sempre que estou contigo. E quando falo contigo, naturalmente. Mas olha, Bruno, tu tens que te decidir: se queres ficar comigo e assumir, se queres ficar com os teus pais e com a tua família... Bruno, tens que ser racional e não afectivo.... Bruno, ouve, eu vou estar fora 3 dias, talvez regresse mais cedo..., não sei... depende de como correrem as coisas.... sim, tu sabes bem que eu te amo e te desejo... Mas tu tens que te decidir.
Enquanto falava, olhava pela janela.
- Eu sei, sim... o teu emprego, eu sei tudo isso... Bruno, eu também te amo muito... Um beijo.
Desligou o telemóvel. Respirou fundo. Coçou a barba e abriu o jornal Record.

Conversas telefónicas no comboio

- Luís, preciso de ti. Tenho que te ver ainda hoje. Preciso muito de ti!... Vais trabalhar às 3h?... Olha, eu estou a chegar aí. Temos uma hora, antes de ires trabalhar. Eu preciso de ti! Luís, eu vou ter contigo... passo em tua casa. Eu preciso de ti, Luís! (ofegante)
Desliga o telemóvel. Olha pela janela. As unhas pintadas. 
Um rosto de mulher jovem, mas apetitosa.
Toca o telemóvel. Atende.
- Ah, és tu, Carlos... (desanimada). Para que me ligas? Já sabes que eu, a esta hora, estou a trabalhar. Não me faças perder tempo!... Não, não posso ir buscar as crianças. Sabes bem que eu estou a trabalhar e só saio às 22h!...  Não... não, vai tu buscar as crianças... ou pede aos teus pais... eu não posso, ainda sou despedida... não! E olha, não me voltes a ligar para este número. Sabes bem que eu não gosto!
Desliga o telemóvel e volta a marcar um número.
- Luís, sabes que o meu marido teve a distinta lata de me ligar? E para ir buscar as crianças!!! Imagina tu!... Queria ver-me! Disse-lhe que estava a trabalhar... Estou quase a chegar. Preciso muito de ti, Luís!

quinta-feira

- O meu menino é de ouro.
- E onde o colocaste?
- Guardei-o num local seguro e inacessível.
- No cofre de um banco?
- Não, dentro do meu coração.

domingo

Passou a varrer o chão com os olhos.
Primeira vantagem: podia ter uma clara consciência do chão que pisava, facto que, nos dias que correm, se revelava uma mais-valia digna de nota.
Segunda vantagem: evitava tomar consciência do elevado número de nobres, condes, viscondes, duques, afilhados e sobrinhos, que, oriundos da Transilvânia, agora, mesmo à luz do dia, pululavam nas ruas da grande cidade.

sábado

Se perguntarem por mim, digam que eu viajei para a Lua.
Melhor, refiram que eu parti para Saturno.
Se não acreditarem ou acharem que alguém está a gozar, digam, muito simplesmente, que eu fui à tabacaria da esquina comprar uma garrafa de água do Luso. É ainda mais inverosímil, mas muito mais adequada às cabecinhas bem pensantes da terra.
Se calhar foi decapitado. Mas não chegou a aperceber-se da sua situação.
E agora isso não interessa nada.
Porque, já não tendo consciência, não vendo nem ouvindo, não falando nem andando, não pensando e não agindo, já não importa saber onde ficam os pontos cardeais.
Acreditou, desde sempre, na bondade dos homens, entendendo-os como seus irmãos até ao dia em que recebeu uma facada nas costas.
Consultado o cadastro do deliquente, admirou-se de o crime não ter sido considerado como incestuoso.
Foi, durante muito tempo, bombeiro sapador, mas também, quando tal se revelou necessário, escriturário, administrativo, telefonista, motorista, mestre de cerimónias, electricista, mestre de obras, carregador, montador, secretário, servente, comando, mas agora que a época oficial dos fogos florestais tinha sido inaugurada, cansou-se das suas tarefas, e decidiu ir dormir.

quinta-feira

YUPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!

Ficou puto com a notícia.
A conhecida Sociedade Filarmónica de Cabeça de Cima, que contava com o malabarista de serviço, cuspidor de fogo e que, habitualmente, animava as festas locais, ia ser extinta e refundada na nova Sociedade Artística e Cultural das Cabeças de Baixo e de Cima. Claro que a designação parecia ser um problema, mas rapidamente se acordou que tudo se resolveria com uma série de anexos nesse nome da extinta e gloriosa sociedade. Passou, assim, a designação a ser: Real e Muy Nobre Sociedade Artística e Cultural das Valorosas e Pensantes Cabeças de Baixo e de Cima.
Quanto aos artistas, dado que o cachet disponível para as festas em honra da Senhora da Agonia, da Senhora do Desespero e da Senhora da Boa Morte não era muito elevado, foi decidido continuar a recorrer ao malabarista cuspidor de fogo, e promover a formação intensiva de um prestidigitador, de dois ou três mágicos, de um animador para criancinhas, de um encantador de serpentes e de bichos afins, bem como de alguns meninos de coro, de anjinhos (que são sempre úteis nestas festas religiosas), e de algum povo, pois, como bem opinam os cronistas, é sempre necessário haver alguém que bata as palmas e que se divirta com as actividades desta sociedade. 
Foi igualmente decidido contratrar, para a próxima festa, uns ranchos folclóricos e uns tocadores de pífaro e de pandeireta, pois o sermão já estava encomendado e aquilo que o povo gosta mesmo é de circo. 
(Algumas vozes mais experimentadas aconselharam também a contratação de uns domadores de leões, mas, dado que já viria o encantador de serpentes tal opinião não foi tida em conta. E até porque, caso houvesse algum distúrbio, os leões, dado a sua identificação e especial visibilidade, poderiam ser rápida e higienicamente abatidos. E a sua carne distribuída para animação do povo....)
E assim, o nosso ilustre mestre de cerimónias, apesar de pensar (ingenuamente, diga-se de passagem) que teria algo a dizer nessa reorganização da Sociedade, de que ele era parte também visível, calou-se. E a seguir vestiu o seu melhor traje de cerimónia e, com um ar de político em campanha, recriou as famosas figuras de cera do museu Madame Tussauds.

terça-feira

In Memoriam

Nova Iorque, Setembro de 2001

9 de Setembro

Acordou sobressaltado e ofegante. Olhou o relógio: marcava 6:59. Levantou-se, mas teve que voltar a sentar-se na borda da cama, pois estava demasiado assustado com o pavoroso pesadelo que tivera. Estava numa floresta e a sua companheira pedira-lhe para ir buscar uns ramos lá fora. Era preciso fazer uma fogueira, para aquecer a cabana, onde, por artes mágicas, residiam agora. Saíra, mas, mal dera sete passos, viu-se rodeado de uma matilha de lobos. Três deles avançaram na sua direcção e cravaram as suas mandíbulas no seu corpo. Lutou com veemência, mas sentiu-se desmembrado. Cada pedaço do seu corpo estava num animal diferente, mas era como se todos os pedaços continuassem a formar um único e uno corpo. Imaginou que isso seria a morte.

10 de Setembro

Estou f*****! O desgraçado do PC foi à m****! Lá na empresa, disseram-me que foi um crash do sistema e que ainda será possível recuperar os ficheiros perdidos. A bem dizer, não acredito! Toda a minha rede de contactos foi para o c******, com a porra desta falha do sistema. Sinto-me mal. Só isto e a merda do sonho que tive ontem à noite. Acho que tenho andado a fumar umas ganzas a mais!

Ao almoço, fiquei totalmente puto, com a notícia que o L. me deu. Já não o via há mais de 7 anos. Não sei como nos cruzámos no botequim a que, volta e meio vou, para fumar uma passa. Logo o L., sempre tão arrumadinho, com aquele ar de menino do coro… Não é que fiquei a saber que a gaija, com quem mantenho um relacionamento vai para mais de 10 anos, vai juntar os trapinhos com uma outra. Aquela filha da p**** que me tem f***** a cabeça e a vida… Só me faltava mais esta! Decididamente, hoje até parece uma sexta-feira, 13!

11 de Setembro

Decidido a dar um rumo definitivo à sua vida, chegou ainda antes da hora, seriam umas 8h30, ao 101º andar do seu local de trabalho, situado na Torre Norte do World Trade Center.
O resto da história não necessita de ser contado.
É sobejamente conhecido em toda a cidade.

Moral da história: mais vale um burro que me leve que um cavalo que me derrube!

Adenda: este é um texto que procura homenagear o recentemente falecido Luís Pacheco (1925-2008).

domingo

procuro inspiração para a escrita de algo que, de facto, valha a pena ser escrito e ser lido. não sei se alguma vez terei essa capacidade. resta-me o consolo de não ter instalado um contador de visitas e viver na ilusão de ser um escritor lido e famoso a nível planetário.